segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Naufrágio da Europa: novo Titanic ou botes à vista?

Lendo o artigo de João Pereira Coutinho sobre o resultado das últimas eleições européias (http://rodrigoconstantino.blogspot.com.br/2012/05/o-naufragio-da-europa.html), enviado pelo parceiro de reflexões Ruy Leal, visualizo como meu tema de pesquisa (neodesenvolvimentismo) é atual. O que é a eleição de Hollande senão: 1) o diagnóstico de que a crise de 2008 ainda continua forte na França; 2) o remédio de austeridade francesa, receitado pela Alemanha, foi de um amargor insuportável para os franceses; 3) a promessa de Hollande é um novo tipo de remédio que, ao invés de matar a doença de fome, busca fortalecer as defesas do corpo. Esse novo tipo de remédio se materializa numa negação do discurso (e práticas) neoliberais de remeter as construções coletivas da sociedade (e formativas do próprio processo produtivo) apenas à livre movimentação das forças de mercado. Em oposição a isso, receita-se um reposicionamento do Estado diante da economia. Afinal, se é para injetar um bilhão de dólares na GM para salvá-la da incompetência dos seus diretores nababescamente remunerados, porque não usar da autoridade legitimada democraticamente (em substituição a autoridade imposta pelo grande capital, tão autoritária quanto, mas sem nenhuma legitimidade) para fazer mais do que apenas tapar o poço sem fundo das sandices especulativas criadas pela inesgotável criatividade dos financistas (Derivativos, NINJA Loans, Subprime Mortgagees)? A discussão em torno da possibilidade de elaboração de um projeto de desenvolvimento nacional está menos nas dificuldades de, uma vez elaborado, levá-lo adiante pelas mãos das precárias lideranças políticas existentes, do que na aceitação da própria ideia da possibilidade da elaboração consciente e intencional de algo tão amplo quanto tal projeto e que precisa, contraditoriamente à sua unidade interna, refletir a diversidade do seu ambiente social. Para pensadores da linha do representante maior da Escola Austríaca, Friedrich von Hayek, é justamente essa barreira cognitiva que torna qualquer proposta de projeto coletivo um passo para governos totalitários (seu famoso “Caminho para Servidão”). Já pensadores contemporâneos como K. Sabeel Rahman, da Universidade de Harvard, entendem que a democracia pode muito bem superar esse obstáculo, uma vez que essa diversidade não pode ser igualmente totalitária, pois a vida em sociedade não comporta os extremos da liberdade negativa ou dos modernos (na clássica distinção de Benjamin Constant, notabilizada por Isaiah Berlin, com a liberdade positiva ou dos antigos). Quem vive em sociedade e tem sua vida garantida por uma série de construções coletivas como segurança, serviços públicos, urbanidade, valores compartilhados não pode se fechar em um hedonismo autista, considerando que os impostos que paga ao governo são o suficiente para comprar seu ticket de isolamento em seu universo particular (algo como “pago impostos para os políticos me governarem”, a lá Schumpeter). Obviamente defendo a tese de Rahman e a liberdade dos antigos, mais que a dos modernos, pois a liberdade como um fazer proativo e socialmente legitimado é o que está na base do neodesenvolvimentismo. Quando Hollande recusa a austeridade pela austeridade de Ângela Merkel em nome de uma ação responsável mas proativa, ele se junta a outros líderes mundiais que defendem o que o The Economist chamou este ano de “Capitalismo de Estado” (China, Brasil, Índia, Coréia do Sul, Japão e até, a partir da leitura de Rahman sobre o governo de Obama, com sua nova política de saúde e sua política industrial, os Estados Unidos). Para a extrema-direita, conservadora e porta-voz do grande capital, o “Capitalismo de Estado” é o totalitarismo previsto por Hayek Não é a toa que os republicanos adoram chamar Obama de socialista. Para a extrema-esquerda, revolucionária e porta-voz do proletariado, o “Capitalismo de Estado” é só mais um disfarce para o eterno “Comitê da Burguesia”. Sem me sentir a vontade em nenhum dos segmentos acima, “Capitalismo de Estado” para mim é a recusa do discurso neoliberal de que “o mercado resolve” e a aceitação do papel de autoridade democraticamente legitimada na condução (termo amplo que admite tanto a ação direta via empresas públicas quanto a ação indireta via mediação de pactos entre trabalhadores e empresários) de um projeto de desenvolvimento nacional. Negar tal papel ao Estado não é garantir que todos sejam tratados igualmente, sem os privilégios concedidos pelo Estado, mas sim fazer com que a competitividade intrínseca ao capitalismo selvagem vá atrás da concessão desses privilégios e desse tratamento diferenciado por todos os meios possíveis, da corrupção direta no Brasil até o lobby legalizado nos EUA. Lendo Joseph Schumpeter é possível afirmar, como faz Ha-Joon Chang, que a suposta assimetria de informações, vista pelos economistas neoclássicos como uma típica falha de mercado a ser corrigida, é, na verdade, o motor de propulsão dos ganhos diferenciados da empresas, que investem em pesquisa justamente para terem informações que seus concorrentes não têm. A competição entre as forças de mercado e a competição entre as forças políticas sempre existirá, assim como a imposição da vontade dos vencedores momentâneos dessas disputas sempre existirá. Como eu disse, a diferença entre a imposição da vontade do mercado ou do grande capital, individualizado nas empresas globais, e a vontade geral (para usar o termo de Rousseau), individualizada nos governos democraticamente eleitos, é apenas a legitimidade da segunda em relação à primeira. A vinculação direta entre capitalismo e democracia que pretende, por exemplo, Denis Rosenfeld, com base nos pensadores liberais e neoliberais, é uma peça de retórica sem maior substância. O capitalismo pode ser tão opressivo e totalitário quanto qualquer outro modo de produção (Rússia e China, que aderiram, total e parcialmente, ao capitalismo provam isso). Até porque, diversamente do que dizia Marx, o modo de produção não determina a superestrutura normativo-cognitiva, ainda que a influencie bastante. Porém, esta decorre de uma série de outras condicionantes que não estão inclusas na sacrossanta econometria dos neoclássicos como John Bates Clark e Vilfredo Pareto (a idealizada “Economia Pura”, a qual o economista português José Reis opõe a “Economia Impura”, de cunho institucionalista e muito mais realista). A depender desse conjunto de circunstâncias (e não apenas das econômicas), um arranjo sócio-político que congregue forças econômicas, políticas e sociais será, de forma mais ou menos duradoura, formatado. É a interação dessas forças e, principalmente, da força da sociedade civil, que determinará o grau de opressão que as outras duas forças poderão imprimir ao conjunto da população, sempre maioria numérica, mas ordinariamente também minoria decisória. Voltando à França, Hollande quer um governo focado em crescimento e não em austeridade. Em tempos de retranca na seleção brasileira de Mano Menezes, Hollande prefere jogar no ataque, a lá Barcelona, de Pepe Gardiola. Isso me lembra minha entrevista em São Paulo com o economista da UNICAMP, João Furtado. Nesta conversa, ele me dizia, entre uma xícara de café e outra, que a grande diferença entre o governo Lula e um eventual governo Serra foi a forma de tratar a crise de 2008. Segundo Furtado, um governo do PSDB teria seguido a cartilha-padrão de enfrentamento de crises financeiras, como a que ocorreu em 1999, ou seja, fechar a torneira, se apoiar nas reservas cambiais (infladas ocasionalmente pelo FMI) e esperar, encolhido, a tormenta passar. Em um contexto de crise financeira, como o de 2008, Lula, talvez até numa “sacada” pessoal, de sensibilidade à sua própria sobrevivência política e à manutenção dos louros conseguidos ao longo de 5 anos de lua de mel com a economia, pensou o imponderável e nadou contra a corrente, indo para o ataque com tudo que tinha em termos de sopa de letrinhas: PAC (investimentos públicos), PDP (Política Industrial), BNDES (financiamento). Com essa receita fora da cartilha da austeridade a todo custo, depois de anos colocando a estabilidade financeira como prioridade zero do governo (prioridade mantida no governo FHC e aprofundada, para desespero dos militantes de esquerda, no governo Lula), o Brasil conseguiu uma reação a crise que foi enaltecida nos quatro cantos do mundo (e claro que com o mesmo número de críticas que acusavam essa reação de ser apenas midiática, uma vez que o Brasil estaria sofrendo tanto quanto os EUA, dos homeless corporativos, ou qualquer um dos PIIGS, o que é, no mínimo, questionável). De qualquer modo, essa nova cartilha (ou devamos dizer “requentada”, pois redita coisas como o New Deal americano ou o Desenvolvimentismo asiático e latino-americano que vigorou entre os anos 1930-1970) vem encontrando novos adeptos do “defender atacando”. Hollande, pelo menos no discurso, é um deles. Se assim for, não parece ser possível reeditar a dobradinha Merkel-Sarkozi (ou “Merkozi”, como chamou a imprensa). Por outro lado, se as duas lideranças máximas da zona do Euro não perceberem o tiro no pé que é uma virar as costas para a outra, os esforços hercúleos de Konrad Adenauer e Charles De Gaulle para criar a União Européia, conforme me foram relembrados em ótimas conversas com o mestre Wolfgang Reiber no último final de semana, irão por água abaixo. Outro ponto iluminado no artigo de Coutinho, e que repercute uma outra receita de negação da austeridade pela austeridade da Alemanha, foi o avanço dos extremistas políticos, inclusive na França do socialista Hollande, com o terceiro lugar de Marine Le Pen. Na Grécia, a situação é ainda mais complexa (não só na economia, mas também na política – quem influencia quem, já que são as desavenças políticas que estão inviabilizando um governo de coalizão, sem o qual a crise econômica só tende a se agravar?), pois tanto a extrema-esquerda (com o segundo lugar do Partido Syriza) quanto a extrema-direita (com o quarto lugar do Partido Aurora Dourada, de clara orientação neonazista) saíram fortalecidos na última eleição. Esse avanço do extremismo, juntamente com outros fatores, fazem Coutinho farejar um retorno aos anos 1930, com a sucessão de crise econômica aguda; que abre espaço para discursos extremistas sem qualquer compromisso com a governabilidade, pois nunca foram vidraça, só pedra; que abre espaço para uma escalada de conflitos. Para mim, trata-se de um diagnóstico possível, porém ainda prematuro. Existe uma clara comparação entre a gravidade da Crise de 2008 e a gravidade da Crise de 1929. Isso se deve ao fato de que a Crise de 2008 é a mais parecida com a de 1929 dos últimos 35 anos, pois se equipara a esta tanto em centralidade quanto em impacto, diferentemente do Crack de Wall Street, em 1987, que ocorreu no coração do capitalismo, mas teve menor impacto na economia; e das crises econômicas dos anos 1990, que tiveram grande impacto na economia, mas ocorreram fora desse coração, visualizado na Tríade de Kenichi Ohmae (EUA-Alemanha-Japão), começando no México e se espalhando por Ásia, Rússia e Brasil para acabar no desastre argentino de 2001. Assim, dois fatores fazem com que o diagnóstico de Coutinho tenha que ser considerado: 1) as semelhanças de centralidade e impacto entre as duas crises; 2) o fato de que a Crise de 2008 ainda não foi totalmente superada (estamos em 2012!!), não dando para dizer se já chegamos no fundo do poço. Pior é se no fim do poço, ao invés de uma mola (como pregam os otimistas), nos depararmos com um fundo falso. O fato é que não dá para saber o que está depois da curva. O que Coutinho vê é a ascensão dos extremismos políticos e suas conseqüências nefastas. O quadro, para mim, é um pouco mais matizado, pois quando Coutinho apura o olhar para perceber os perigos (inegavelmente reais) do extremismo, ele perde de vista o quadro mais amplo e que emite sinais contrários. Por exemplo, a própria França, do extremismo de Le Pen, preferiu testar uma mudança menos drástica, porém significativa, elegendo um presidente socialista, o primeiro em 30 anos, desde Mitterrand (passando pela derrota de Lionel Jospin, em 2002). Na Grécia, a extrema-ESQUERDA superou a extrema-DIREITA (se é que essas diferenças são ainda tão cruciais – no caso de um partido neonazista, como o Aurora Dourada, ela é obviamente importante). Na Inglaterra, os trabalhistas liderados por Ed Miliband se fortaleceram nas últimas eleições, pressionado o neo-Tory David Cameron. Por fim, temos a emblemática vitória de Obama, que agora em 2012, tem amplas chances de reeleição contra o “homofóbico” Mitt Romney, a depender da recuperação econômica que, ainda tímida, já começa a aparecer. Se, por um lado, o extremismo político, apesar de claramente pertencer à fauna política, ainda é um animal exótico em democracias importantes, por outro podemos lançar também um olhar para os reflexos militares desses extremismos periféricos e as possibilidades de uma escalada de conflitos armados. Saindo dessas democracias consolidadas, onde essa possibilidade parece mais remota, podemos observar os países-baleias (BRIC) para saber se seu ímpeto de “botar a porta abaixo” para entrar a todo custo no primeiro mundo representa o perigo de uma sanha totalitarista. Dos BRICs, a Rússia e a China são as mais sérias candidatas ao posto de Superpotência Totalitária. Apesar de Putin (ex-KGB) representar uma direita militar, a Rússia tem eleições formais (questionáveis pelo povo, mas não abolidas pelo governo) e não há ocupação militar russa em outros países (coisa que os EUA, a quem ninguém acusa de ser totalitário, faz há anos no Afeganistão e no Iraque, liderando uma “força internacional”, ironizada por Michael Moore em “Farenheit 9/11”). Já a China, poderíamos dizer uma esquerda igualmente militar, se não é uma democracia igualitária, também não é o Reich totalitário (há trabalho desumano – que existem mesmo nos rincões do Brasil, mas não campos de concentração para indesejáveis; há influência política regional – como EUA e URSS fizeram ao longo da Guerra Fria – mas não há ocupação militar; há fechamento para o mundo – que o diga o Google -, mas não a lá Coréia do Norte, como mostra o fato da China ser hoje uma das maiores exportadoras de estudantes do mundo. Como comentou o professor do INSPER, Sérgio Lazzarini, em bate-papo após uma de suas visitas à Salvador, as universidades americanas estão cheias de estudantes chineses, como ele pode constatar na sua temporada em Harvard. Apesar de temer mais um século sinocêntrico do que um século nipônico (como se cogitou nos bons tempos do Império do Sol Nascente), já que a cultura japonesa é calcada na solidariedade e no coletivo, enquanto a cultura chinesa é muito mais isolacionista (haja vista a individualidade socialmente autista dos chineses em seu dia-a-dia urbano) e antropocêntrica (haja vista seu modelo de desenvolvimento industrial, altamente predatório, reeditando um cenário digno dos romances de Charles Dickens ou das denúncias de Friedrich Engels). Uma postura não muito surpreendente para um país cujo nome significa “Reino do Meio”. De qualquer modo, ainda vivemos em um mundo multilateral onde EUA, Alemanha, Índia, Japão e Brasil, entre outros, dividem o cenário com o dragão chinês. Pelas primeiras palavras de Hollande, a França é uma peça prestar a traçar uma outra trajetória no tabuleiro geopolítico. É por isso que, onde Coutinho enxerga um naufrágio, eu ainda visualizo alguns botes salva-vidas, seja na complexidade em si da realidade européia, que não se esgota nos extremismos políticos, seja na multilateralidade de um século que, se não é mais americano, não é totalmente chinês. Ainda não. Ainda bem.